terça-feira, 15 de maio de 2018

A FORÇA DA DEMOCRACIA ESTÁ NO CONSENSO — E ONDE ESTÃO OS SEUS LIMITES?


(Texto extraído do livro Contra o Aborto de autoria do filósofo Francisco Razzo, pg 78-81)
A democracia é reconhecida como poder da maioria. Evita-se, no primeiro momento, pensar a democracia como exercício de força bruta da maioria e a conveniência do mais forte. Se acontecer o exercício de força bruta, estamos diante de uma tirania. A democracia é reconhecida como exercício político do consenso de opiniões. Mediante o qual se busca administrar ódios e estabelecer acordos pacíficos. Para haver consenso, presume-se o conflito de interesses entre as pessoas que coexistem no interior de uma comunidade plural. O sistema político conhecido como democrático apresenta uma forma que se distingue do uso da violência para resolução desses conflitos — a ordem democrática reconhece e valoriza o pluralismo.
Essa força deve ser exercida através do debate de ideias em viva comunidade política de diálogos. Na democracia valoriza-se o debate argumentado, a fala polida e o consenso da maioria. Podemos chamar a democracia de poder sustentado pela opinião defendida pelo discurso argumentado e persuasivo. Não importa quais os detalhes das regras que regem os acordos, o fato notável no sistema democrático é a crença de que consenso representa a única fonte disponível de todas as importantes decisões no interior do espaço democrático.
A democracia também valoriza a publicidade das opiniões, a liberdade de crítica e a igualdade social entre os membros.
O valor de uma opinião depende necessariamente de uma expressividade no espaço público. Os gregos chamam de ágora, nós chamamos de redes sociais. A função do espaço público, porém, é a mesma: compartilhar e consumir opiniões, defender e rebater ideias. Tudo com o nobre objetivo de consolidar no poder a boa opinião para o benefício de todos mediante a força de persuasão. Antes de se tornar parte efetiva de um programa de governo, leis ou decretos precisam passar pelo crivo da opinião pública — trata-se do meio legítimo de depuração das crenças. O espaço público privilegiado para o comércio de ideias é o ambiente indispensável para a ordem democrática consolidar o pluralismo. Não faz sentido buscar o valor de uma opinião no espaço íntimo da vida privada. Opiniões precisam ser dadas, ensaiadas, pensadas e discutidas. Primeiro discutimos com nós mesmos.
Pensar significa o diálogo solitário travado no silêncio interior e que simula o diálogo com a comunidade.
A liberdade de crítica também tem função importante. Se uma opinião não pudesse ser questionada, a democracia perderia um de seus principais alicerces. Liberdade de crítica não se limita à mera liberdade de expressão. Criticar é avaliar e julgar os detalhes que fazem uma opinião ser considerada boa ou ruim, e não o simples direito de expressar livremente ideias. A noção de liberdade de expressão surgiu na modernidade e estava ligada a uma espécie de desejo de ofender monarcas, príncipes, padres e freiras — e, de vez em quando, manda-los para guilhotina. A liberdade de expressão consiste um importante direito, mas não é suficiente. Liberdade de crítica deriva do princípio segundo o qual toda opinião é falível e deve ser questionada, avaliada e justificada, não só expressa, dita ou pronunciada.
Mas para os sofistas, toda opinião é infalível até que se prove — com força retórica — o contrário.
Nesse espírito, Protágoras e Górgias defenderam a tese segundo a qual o conhecimento nada mais é do que técnica ou utensílio para garantir o benefício da vida do homem em uma sociedade democrática. Com isso, eles excluíram a possibilidade de conhecimento e compreensão da natureza das coisas. A parir daí, devemos aprender como defender a melhor opinião para o benefício da sociedade e não se preocupar com a possibilidade de encontrar verdades objetivas, sobretudo acerca da justiça. A inteligência e a linguagem são bons instrumentos para o benefício social. E liberdade é poder expor, sem maiores obstáculos, suas opiniões infalíveis no interior da comunidade de diálogos.
Por fim, a igualdade social. Na viva comunidade democrática de conflito e diálogo, todos os membros devem ter suas diferenças sociais suspensas — no caso da antiga democracia grega, isso era bem limitado. Mulheres, crianças, estrangeiros e escravos não eram considerados membros da comunidade política. A isonomia era uma propriedade exclusiva da classe dos políticos. O sujeito do poder era bom, grego e livre. Com a evolução da democracia moderna, mediante influência cristã, a igualdade deixou de ser uma propriedade restrita a uma classe privilegiada, e as pessoas se tornaram iguais em dignidade. A dignidade é a propriedade intrínseca de todos os membros da comunidade moral e não só a propriedade dos membros da comunidade política. Todas as pessoas são iguais em dignidade, porque são pessoas e não coisas. No entanto, a dignidade não é um valor evidente; ela precisa ser demonstrada com argumentos. Mostrarei que no contexto da discussão do aborto alguns defensores da prática alegam que a dignidade é uma noção ambígua e, por isso, precisa ser excluída do debate. No entanto, eles confundem “dificuldade”, pelo fato de não ser uma propriedade evidente, com “ambiguidade”.
No caso do regime democrático, o consenso legitima o poder. A modernidade chamou, depois de Rousseau, de “vontade geral” ou “poder do povo”. O consenso é o acordo entre a maioria, ou representantes da maioria. Por meio da fala argumentada, e não ameaçando o adversário com violência — pelo menos é o que se espera —, o consenso defino o conjunto de leis que regularão a vida em sociedade.
O princípio no qual o poder está baseado é força da persuasão e não na persuasão pela força. E, assim, ninguém parece querer suspeitar da vocação da democracia para a violência. Pois, nesse primeiro momento, a ideia de partir para agressão significa perder o debate, a razão e todos os limites.
Então há limites, e o discurso não é tudo — mas isso não é tão obvio.

terça-feira, 3 de abril de 2018

CONSIDERAÇÃO SOBRE SI MESMO

E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho?
Mateus 7:3

Por: Tomás de Kempís, (1380 – 1471)

1- Não podemos confiar muito em nós mesmos, porque muitas vezes nos faltam graça e entendimento.
Em nós há pouca luz, e a que temos depressa perdemos por causa da nossa negligência.
É comum não percebermos nossa cegueira interna.
Muitas vezes praticamos o mal, e pioramos as coisas nos desculpando.
Somos, não raro, movidos pela paixão, e a tomamos por zelo.
Repreendemos coisas insignificantes nos outros, e deixamos passar coisas muito piores em nós.
Bem depressa sentimos e avaliamos o que sofremos nas mãos dos outros, mas não nos importamos com o que os outros sofrem por nossa culpa.
Quem age corretamente, e pensa com seriedade no que faz, pouco motivo terá para julgar com rigor o próximo.

2- O cristão interior prefere cuidar de si mesmo antes de pensar em qualquer outro tipo de cuidado. Quem cuida de si mesmo com diligência pouco fala dos outros.
Você jamais será muito piedoso internamente, a menos que relegue ao silêncio os assuntos dos homens, preocupando-se, sobretudo consigo mesmo.
Se você se preocupar unicamente com Deus e consigo mesmo, pouco será afetado pelo que se passa no exterior.
Onde você está quando não está consigo mesmo? E depois de atentar para tantas coisas, que proveito terá tirado se de si se descuidou?
Se quiser ter paz de espírito e verdadeira unidade de propósito, coloque de lado tudo o mais e examine-se a si mesmo.

3- É assim que você fará progresso: mantendo-se livre de todo cuidado temporal.
Grande será sua queda se você achar que existe algum valor nas coisas temporais.
Não permita que nada lhe pareça grandioso ou agradável, não considere aceitável coisa alguma, exceto Deus, ou o que for de Deus.
Considere inútil todo conforto recebido de qualquer criatura.
A alma que ama a Deus despreza todas as coisas inferiores a Deus.
Somente Deus é eterno, Ele é a consolação da alma e a verdadeira alegria do coração.
(Laércio Otone)